Durante muitos anos, adormeci com o barulho do mar beijando a areia, porque nossa casa ficava bem de frente para a praia e a janela do meu quarto se abria para o horizonte de barcos e nuvens. Às vezes penso que o que me rouba o sono é a falta daquele som ritmado que as ondas da baía iam produzindo, como se corressem todas para o mesmo ponto, em busca do afago de prata da lua.
Durante muitos anos, fitei aquele horizonte com a cabeça cheia de ideias e vontades e desejos que nem eu sabia que existiam. Durante anos, eu estive ali, ouvindo o mar me contar sempre a mesma história, que eu ia transformando em outras histórias, porque, assim como os poetas, o mar acendeu a chama e, depois, recolheu-se no recuo da maré. Mas sinto falta daquela melodia própria, que foi minha por tanto tempo.
O mar da minha memória não é claro. A baía de Guanabara ainda tinha saúde, havia peixes em profusão, mas era um mar escuro e não se via quase nada abaixo da linha d'água. Um mergulho de olhos abertos era como enrolar-se num espesso tapete de musgos. E, é claro, onde não há visibilidade, há medo. Onde não mora a luz, cresce alto o mistério dos dias, de modo que acreditávamos em toda e qualquer criatura que pudesse habitar aquelas profundezas e ouvíamos encantados as lendas e contos que brotavam da imaginação dos adultos, eles também eternamente à cata de sereias.
Meu pai, um dia, sentado na mureta de cimento, contou a história de uma raia gigante que vivia por ali e que era impossível de ser capturada, tamanha sua habilidade e força. Durante anos, debruçado na janela do quarto, olhando a esteira da lua, eu imaginei a majestade silenciosa que batia as asas naquelas águas escuras. Ela tinha um nome, mas já não lembro qual era.
Lembro do pé de acácia mergulhado nas sombras e lembro de mim mesmo ali, naquela janela. Lembro, talvez, de um casal que passou rindo pela rua, metade do corpo oculta pelo muro alto. Lembro da mangueira tão carregada de frutos que os galhos chegavam a vergar e lembro dos gatos e de sua desenfreada vontade de amar, enchendo de gritos a noite paralisada pelo verão. Acho que isso é tudo.
Atualmente o que embala meu sono é outra música e minhas noites, quase sempre, são noites de estrangeiro. O mar fica longe e dele só chegam aves, que vêm dormir no refúgio da mata. Nenhum ruído, a não ser a cantoria dos insetos. As noites são quentes, abafadas e a temperatura até lembra o berço, mas falta aquele arrastar de saias pesadas e a espuma branca que podia ser vista até nas noites mais escuras.
Uma noite dessas, entretanto, fiquei até tarde na casa de amigos e, como já tinha abusado do vinho e não queria voltar para casa às tantas da madrugada, deixei-me ficar no quarto de hóspedes cuja janela se abria para o mar. Achei que a magia de então voltaria e que meu sono seria o mesmo mergulho vertiginoso no mundo dos sonhos, mas não foi assim. Acabei percebendo que o que estava faltando era o olhar daquele menino na janela. É curioso isso. De uns tempos para cá, as noites tornaram-se estranhas, como se eu dormisse sempre em um outro país. Alguém aí já se sentiu assim?
Revista Isto É - 22/04/09
Abraços!
Durante muitos anos, fitei aquele horizonte com a cabeça cheia de ideias e vontades e desejos que nem eu sabia que existiam. Durante anos, eu estive ali, ouvindo o mar me contar sempre a mesma história, que eu ia transformando em outras histórias, porque, assim como os poetas, o mar acendeu a chama e, depois, recolheu-se no recuo da maré. Mas sinto falta daquela melodia própria, que foi minha por tanto tempo.
O mar da minha memória não é claro. A baía de Guanabara ainda tinha saúde, havia peixes em profusão, mas era um mar escuro e não se via quase nada abaixo da linha d'água. Um mergulho de olhos abertos era como enrolar-se num espesso tapete de musgos. E, é claro, onde não há visibilidade, há medo. Onde não mora a luz, cresce alto o mistério dos dias, de modo que acreditávamos em toda e qualquer criatura que pudesse habitar aquelas profundezas e ouvíamos encantados as lendas e contos que brotavam da imaginação dos adultos, eles também eternamente à cata de sereias.
Meu pai, um dia, sentado na mureta de cimento, contou a história de uma raia gigante que vivia por ali e que era impossível de ser capturada, tamanha sua habilidade e força. Durante anos, debruçado na janela do quarto, olhando a esteira da lua, eu imaginei a majestade silenciosa que batia as asas naquelas águas escuras. Ela tinha um nome, mas já não lembro qual era.
Lembro do pé de acácia mergulhado nas sombras e lembro de mim mesmo ali, naquela janela. Lembro, talvez, de um casal que passou rindo pela rua, metade do corpo oculta pelo muro alto. Lembro da mangueira tão carregada de frutos que os galhos chegavam a vergar e lembro dos gatos e de sua desenfreada vontade de amar, enchendo de gritos a noite paralisada pelo verão. Acho que isso é tudo.
Atualmente o que embala meu sono é outra música e minhas noites, quase sempre, são noites de estrangeiro. O mar fica longe e dele só chegam aves, que vêm dormir no refúgio da mata. Nenhum ruído, a não ser a cantoria dos insetos. As noites são quentes, abafadas e a temperatura até lembra o berço, mas falta aquele arrastar de saias pesadas e a espuma branca que podia ser vista até nas noites mais escuras.
Uma noite dessas, entretanto, fiquei até tarde na casa de amigos e, como já tinha abusado do vinho e não queria voltar para casa às tantas da madrugada, deixei-me ficar no quarto de hóspedes cuja janela se abria para o mar. Achei que a magia de então voltaria e que meu sono seria o mesmo mergulho vertiginoso no mundo dos sonhos, mas não foi assim. Acabei percebendo que o que estava faltando era o olhar daquele menino na janela. É curioso isso. De uns tempos para cá, as noites tornaram-se estranhas, como se eu dormisse sempre em um outro país. Alguém aí já se sentiu assim?
Revista Isto É - 22/04/09
Abraços!
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